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Torturando os números até que confessem

Toda vez que tropeço em alguma interpretação das estatísticas que considero deliberadamente tendenciosa, me lembro de uma frase que escutei no início de minha carreira quando, indignado com esse tipo de atitude, perguntei a um companheiro mais experiente como profissionais sérios podiam ter esse tipo de atitude.

- Os números estão aí para serem torturados até que confessem o que queremos. – ele me respondeu, com um certo cinismo.

Eu, engenheiro recém formado nos idos dos anos 80, jovem e idealista, custei a aceitar que a sociedade permitisse que essa torpeza fosse cometida impunemente.

Sempre acreditei que informações robustas, fidedignas e abrangentes fossem o fundamento para tomarmos as melhores decisões e que, portanto, deveriam ser consideradas um patrimônio relevante, a ser preservado, e constantemente atualizado.

Com o passar das décadas compreendi, que fora do escopo da ciência aplicada, os números costumam ser alegorias para dar suporte às narrativas e torná-las mais críveis, mais do que utilizados para tomar decisões.

Passei boa parte da minha vida profissional me esforçando para garantir que as informações que ajudei a produzir fossem as mais acuradas e completas, protagonizando histórias verdadeiras e dando suporte a boas decisões.

Mas isso, obviamente, não mudou o mundo, porque inventar histórias para defender pontos de vista é um talento da humanidade.

Nos últimos anos, esse talento ganhou a atenção da sociedade em função das “fake News”, as notícias falsas produzidas predominantemente com intenções políticas.

Mais recentemente, a interpretação das estatísticas, uma arte mais sofisticada, também ascendeu às luzes da ribalta, não como alegoria, mas como protagonista, no acompanhamento dos indicadores do impacto da Covid-19 e de seus tratamentos.

Tomando o número de óbitos em decorrência da pandemia como exemplo, no momento em que escrevo estas linhas o Brasil está próximo de ocupar a vice-liderança do trágico ranking global. Mas se considerarmos o tamanho de nossa população e calcularmos o número de óbitos por mil habitantes, caímos para a vigésima posição, com resultados muito melhores do que países como Bélgica, Inglaterra, Espanha, Itália, França, Suécia, Holanda e Estados Unidos. E, considerando que nosso país tem dimensões continentais, cada estado brasileiro tem sua própria história. Rio Grande do Sul, para ilustrar, estaria ocupando a posição 190 do ranking Worldometer se fosse um país, com um sexto das mortes registradas em Portugal, país com população similar e considerado um bom exemplo europeu no combate à pandemia.

Que história você quer contar? A de que estamos fazendo um bom trabalho na contenção da pandemia, quando comparados a algumas das grandes potências mundiais, apesar de todos os problemas políticos, ou a de que estamos prestes a dividir a fúnebre liderança do ranking com os Estados Unidos?

Poderia me estender mais em exemplos relacionados com a pandemia, como os indicadores da eficiência de tratamentos e protocolos, ou de subnotificação ou de exagero nos números. Mas creio que não é necessário.

Melhor falar sobre outras artes mais sutis, como o uso de imagens (que também são informações). Acabo de assistir um noticiário sobre as manifestações de domingo em São Paulo, que foram pacíficas e ordenadas durante toda sua duração (por volta de 4 horas). Quando já havia terminado, um pequeno grupo de vândalos resolveu entrar em confronto com os policiais que cuidavam da segurança do evento, quebrando vitrines, tombando caçambas e outros objetos nas ruas e provocando pequenos incêndios. As imagens desse confronto, que deve ter durado uns 30 minutos, tiveram dez vezes mais exposição (estimativa pessoal) na tela do noticiário do que as das quatro horas de manifestação pacífica. São essas imagens violentas que estão em minha memória.

"Um mundo melhor depende de informações melhores, para decisões melhores."

Meu objetivo com este texto é convidar os leitores a adotarem uma atitude crítica diante das informações, interpretações e imagens que são utilizadas para tornar histórias mais convincentes.

Essa atitude é importante porque o risco de perder sua credibilidade estimula os contadores de histórias a manterem suas narrativas mais próximas da informação.

Aproveitem esse momento, em que as intenções estão mais óbvias, para observar esse processo e aprender. Será útil, não apenas agora.

Informações parciais e interpretações criativas são utilizadas diariamente para tornar as histórias mais convincentes, particularmente quando essas histórias são sobre causas sociais (discriminação, violência, racismo), ambientais (agricultura, desmatamento, emissão de carbono) ou econômicas (inflação, PIB, crescimento). Também para temas menores, que nos interessam pouco, mas que devem ser importantes para alguém, em algum lugar, e em algum momento sua opinião será importante para essa pessoa.

Quando a história nos agrada, não costumamos questionar. Apenas incorporamos o argumento em nosso discurso. Quando não agrada, quase sempre condenamos a fonte, mais do que o contador de histórias. Em ambos os casos, o contador de histórias terá nos transformado em personagens de sua narrativa.

Para que a realidade seja melhor, precisamos questionar a ficção.


(foto: Imagem de ArtTower por Pixabay)

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