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O bom senso e o senso comum

Meu pai costumava dizer que o bom senso é a coisa mais bem distribuída na face da Terra: todo mundo acredita que tem, na medida certa.

A diversidade de pensamentos, de visões de mundo e de propósitos de vida, entretanto, faz com que nem sempre estejamos de acordo com as noções de o que é “certo” ou “adequado” para cada situação.

O assunto não é novo e há muito tempo a humanidade encontrou caminhos para que a vida em sociedade fosse possível, apesar dessas diferenças.

Em linhas gerais, o que fazemos é estabelecer regras de conduta, para aquilo que é relevante à convivência social, implementando mecanismos de vigilância e para “punição” daqueles que não as cumprirem. Essas regras representam, em tese, o senso comum.

Muitos filósofos dedicaram boa parte de seu trabalho à discussão desse tema, que a partir do século XVII recebeu a denominação genérica de contratualismo, como referência à ideia de um Contrato Social – os acordos que fazemos para garantir uma coexistência mais pacífica e produtiva.

Entre os mais conhecidos, os gregos Aristóteles e Platão preocupavam-se com a justiça, o inglês Hobbes acreditava que só a força de um Estado autoritário poderia controlar o egoísmo humano, seu compatriota Locke concordava com ele, mas entendia que a comunidade deveria participar da definição das regras e o francês Rousseau, mais otimista em relação à natureza humana, defendia ideias mais democráticas considerando que o Estado deveria ser constituído pela sociedade.

Em comum, a ideia de que precisamos estabelecer regras justas e igualitárias, e segui-las, para viver melhor, ainda que, individualmente, não concordemos com algumas delas.

Sem esse acordo, prevaleceria a “lei do mais forte” e viveríamos, permanentemente, em guerra.

"Egoistas, como quer Hobbes, ou naturalmente bons, mas corrompidos, como acredita Rousseau, precisamos de regras de convivência."

Embora os contratos sociais das modernas sociedades democráticas, traduzido pelas Constituições e Leis, pretendam ser igualitários, não resultam em igualdade de tratamento e oportunidades. Estamos avançando, mas a evolução é complexa.

No discurso, os mais favorecidos afirmam que algo precisa ser feito para que os menos favorecidos ou “excluídos” das benesses sociais sejam mais bem atendidos, mas não estão dispostos a desistir de seus privilégios para que isso aconteça. Hobbes talvez tenha sido mais realista do que Rousseau.

Privilégio é um direito, vantagem ou prerrogativa, válidos apenas para um indivíduo ou um grupo, em detrimento dos demais.

A expressão “check your privilege” ganhou espaço nos últimos anos, como um alerta para o fato de que devemos estar atentos aos nossos privilégios ao opinarmos sobre temas sociais.

Nosso “bom senso” está “contaminado” por nossa perspectiva mais ou menos privilegiada.

Um bom ponto de partida para ajustarmos o nosso bom senso é considerar que se você tem algo que outros não têm (um benefício, um tratamento especial, um bem, um direito), ou está fazendo alguma coisa que nem todos podem fazer (utilizando um espaço público com exclusividade, desrespeitando uma regra), não estará em posição de defesa da igualdade e da justiça do contrato social.

Não somos obrigados a acreditar que igualdade e justiça sejam princípios necessários para a sociedade. Temos, inclusive, a liberdade para não seguir as regras sociais vigentes e sofrer as penalidades estabelecidas pela sociedade, caso sejamos “descobertos”.

Mas quem acredita que igualdade e justiça sejam importantes para evitar o colapso social (ou promover o descolapso), deveria refletir isso em suas atitudes.

Desde questões “menores” como levar sua caixinha de som para a praia ou seu animal de estimação para espaços onde não são permitidos, esticar sua festinha de aniversário além do horário determinado pelo condomínio, estacionar por um minutinho em um local proibido ou parar um instante em fila dupla para pegar a criança na porta da escola, até grandes questões sociais como a discriminação e o preconceito, o acesso à educação de qualidade, às condições de moradia, a dependência dos serviços públicos e sua qualidade, acredite que por melhor que seja o seu bom senso, é o senso comum que deve prevalecer, e suas atitudes precisam representar sua adesão ao contrato social.

Numa sociedade democrática, quando você não concorda com algo, ou seja, seu bom senso está em conflito com o senso comum, você tem o direito de se manifestar e procurar mobilizar a sociedade para rever seu contrato social.

Até que essa revisão aconteça, também pode contribuir, pessoal ou coletivamente, para mitigar os efeitos do que considera injusto ou desigual, sempre respeitando as regras estabelecidas.

Quem acredita na igualdade e na justiça como caminho, mas prefere não abrir mão de seus privilégios, deve trabalhar para que toda a sociedade tenha esses mesmos benefícios, para que deixem de ser privilégios.

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