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Estamos na idade das pedras

Reza a lenda que nós, humanos, somos uma espécie privilegiada. A única, sobre a face da Terra, dotada de um cérebro altamente desenvolvido que possibilita o raciocínio abstrato, o que nos permitiu desenvolver a linguagem, solucionar problemas complexos e sermos autoconscientes.

Outros hominídeos antes de nós, embora já demonstrassem talentos criativos superiores aos dos demais animais, não eram tão intelectualmente sofisticados e desapareceram. Há quem diga que nós, os Sapiens, fomos responsáveis por sua extinção, talvez com a ajuda dos Neandertais, a quem eliminamos após o massacre. Outros acreditam que somos, simplesmente, um acidente genético evolutivo da reprodução dos hominídeos anteriores, que desapareceram naturalmente.

Seja como for, deles recebemos alguns conhecimentos importantes como a fabricação de ferramentas e armas com o uso das pedras, uma herança da Idade da Pedra.

Jogar pedras em nossos semelhantes, portanto, é um hábito que nos acompanha há mais de 300 mil anos, desde os primórdios de nossa evoluída espécie.

Com o passar do tempo, a capacidade de abstração que nos distingue presenteou-nos com as metáforas, e já não precisamos jogar pedras concretas. Agredimos com palavras e atitudes, pedras metafóricas.

Deixamos a Idade da Pedra, mas as pedras não nos deixaram.

Continuamos atirando pedras para nos defender das ameaças que, assim como as pedras, também se tornaram mais abstratas.

Hoje nos sentimos ameaçados por ideias diferentes das nossas e por atitudes que não compreendemos ou com as quais não concordamos. Essas ideias e atitudes constituem um ataque frontal à nossa construção mental da realidade, e isso nos apavora.

Há 300 mil anos formávamos um pequeno grupo que demonstrou ser superior aos outros hominídeos com quem compartilhávamos o planeta. Nos livramos deles, mas não do complexo de superioridade.

"Para que sejamos superiores, alguém precisará ser eleito como inferior."

Para nos sentirmos superiores, precisamos relegar alguém à condição de inferioridade. E esse alguém precisa, de alguma forma, ser diferente de nós, para que a superioridade seja justificada. Embora sejamos uma única espécie, contamos com nossa capacidade de abstração para imaginar diferenças. A cor da pele, as preferências sexuais, o formato do corpo, a educação, a região geográfica de nascimento, a idade, a condição física, a visão política e outras pequenas diferenças individuais ou coletivas oferecem um mundo de possibilidades classificatórias para justificar a recriação de um pequeno grupo, o “nós”, superior aos demais, o “eles”, nos quais podemos jogar pedras, nem sempre tão metafóricas.

E nesse processo não nos damos contas de que estamos, apenas, resistindo às possibilidades evolutivas do Homo Sapiens, capaz de criar coisas maravilhosas e de explorar sua sensorialidade de formas incríveis quando não está preocupado em encontrar grupos de humanos inferiores para jogar pedras.

Talvez seja uma maldição de nossa origem genética, da qual só nos livraremos quando um novo acidente reprodutivo expurgue nosso DNA, e uma nova classe de hominídeos surja para compartilhar o mundo.

Essa possibilidade, contudo, é paradoxal. Um novo grupo de humanos mais evoluídos, livre da maldição das pedras, possivelmente nos aceitará como iguais. Mas nós não os aceitaremos, e a probabilidade de jogarmos nossas pedras sobre eles será grande.

Resta-nos torcer para que, sendo mais evoluídos, descubram a cura para nossa maldição antes de serem, eles também, eliminados.

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